Estávamos em
Setembro de 1958, precisamente no dia 20 de Setembro e podíamos visualizar
Catarina escarranchada na burra a caminho da vila a fazer o avio, levava no
alforge a sua menina adormecida pois ainda mamava e por isso tinha que levá-la
sempre consigo. Mariana era uma criança franzina mas saudável, saciava-se com o
leite materno de que Catarina tanto se orgulhava “tenho leite com fartura a
menina não morre à fome”. Atrás dela visualizou alguém que caminhava e que ela
identificou de seguida ( um contrabandista com quem se tinha cruzado várias
vezes , um pobre diabo que tinha de percorrer quilómetros pelo meio do mato ,
tarefa arriscada mas necessária , tinha de fugir aos caminhos principais , não
fosse a guarda fiscal intersectá-lo e podia ter muitos problemas e ele
precisava de fazer isso para alimentar 8
bocas que tinha em casa e na esperança de mais uma muito brevemente pois
a sua companheira estava de esperanças , a barriga já era enorme , o que quer
que fosse não tardaria a nascer.).
O pensamento de
Catarina voou até Santo Aleixo da Restauração e lembrou o guarda fiscal
Francisco que tinha escolhido a profissão errada pois falava-se que era um
homem bom e há tempos integrado numa patrulha teve de tirar uma mochila de café
ao vizinho do lado e quando chegou a casa ouvia-se grande algazarra na casa ao
lado com choros e lamentos:-Ai Joaquim, que faço não temos pão para comer e
agora perdeste o café, e os nossos meninos que comem? Desgraçadinha sou, e tu o
que fazes vais para a venda a gastar o que não tens!
Francisco não
suportou ouvir tais lamentos pois ele também era pai, num impulso agarrou a
mochila e arremessou-a por cima da parede do quintal e seguiu-se o silêncio
pelo que tinha acontecido, não convinha falar depois de tanta generosidade,
apenas olhares de cumplicidade ao longo dos anos. Francisco podia ter arranjado
problemas com a sua atitude; ter de justificar o desaparecimento da mochila mas
contou com a compreensão do seu colega de patrulha, compreensão pouco profissional,
mas compreensível em termos humanísticos. Francisco entrava em stress cada vez
que saía de patrulha para o campo pois sempre haveria um desgraçado a quem
teria de prejudicar, alguém a apanhar bolota ou azeitona em terreno alheio, e
os contrabandistas que eram uma praga á noite.Era a sua profissão e a miséria
era tanta! Cada um safava-se como podia! Melhores dias viriam para Francisco já
faltava pouco para se reformar e então podia descansar com os míseros tostões
que o Estado lhe atribuiria e ocuparia os dias no seu quintal tratando da sua
horta a tempo inteiro e poupando a sua companheira que já tinha bastante com as
lides domésticas.
De repente:
-Mamã, mama
ahahah
-Já vai Mariana já
te dou maminha, que é que eu faço para te desmaginares da mama, já és tão
grande!
-Mama mama mama.
Ahahah.
Catarina desceu
da burra e tirou a sua menina do alforge, sentou-se numa parede e aconchegou-a
e ela chupou com sofreguidão o néctar dos deuses, depois tornou
a escarranchar-se com Mariana á sua frente:
-Arre, burra que
estamos chegando a Barrancos.
Toc toc toc toc
lá seguia Lourença a caminho de Barrancos e
“Quem tem filhos
pequeninos
Sempre lhes
há-de cantar
Quantas vezes a
mãe canta
Com vontade de
chorar”
“Arre burriquito
vamos a Belém
a ver o menino
que a senhora tem
que a senhora
tem que a senhora adora
arre burriquito
vamos lá embora”
-Catrina que
alegre vais, e a menina vai tão caladinha, parece que vai dormida.
-Já se dormiu
outra vez, e vosmecês vão lavar?
-Tem de ser,
logo tem deixarão ali as lascas de sabão que sobrarem para lavares a roupa da pequena.
-Eu aproveito-as
e agradeço a vosmecês.
Toc toc toc toc
Chegaram a
Barrancos e foram logo direito à loja dom Borralho onde Catarina fazia o avio,
onde lhe davam fiado e pagaria após a venda dos chibos e os acertos com o
patrão pois teriam uma percentagem do dinheiro das vendas. Em 1958 muita gente
vivia assim e a todos ganhavam com essa entreajuda, eram outros tempos, hoje
vive-se com o dinheiro na mão, apesar de ainda haver quem dê fiado, não a longo
prazo mas a prazos mais curtos, sempre há quem de uma maneira altruísta
continue a praticar este ato de entreajuda (o Homem ainda é humano!).
Uma barranquenha
ofereceu-se logo para apanhar Mariana, mas não pode ser, a menina começou a chorar,
não estava habituada a ver ninguém e então estranhava as pessoas, mais trabalho
para Catarina que tinha que andar com ela ao colo, já andava mas pedia colinho.
Com alguma ajuda meteu o avio nos alforges e lá se preparou para voltar para a
malhada do Tambor sem antes deixar de passar pela praça a comprar carapaus do
alto para fazer umas sopas com o peixe fresquinho quando chegasse. Naquele
tempo a praça localizava-se no Alto-Sano, hoje Largo de São Sebastião, ali se
podia encontrar a fruta os legumes, a carne e o peixe que se resumia naquele
tempo a venda de sardinhas e carapaus e cação . Os carapaus e as sardinhas eram
mais baratos e muito apreciados pela população mais pobre que não podia comprar
cação nem bacalhau seco, (só colas porque o bacalhau era caríssimo, aliás o
povo é que não tinha poder económico para adquiri-lo).Com o avio lá partiram
para o meio da natureza, para bem longe das intrigas daquela época para o
paraíso onde tudo era puro e natural onde a presença da mão humana ainda não
tinha a notoriedade que se começou a manifestar nas próximas décadas, num tempo
não muito distante.
Era já a uma da
tarde quando chegaram, Vicência predispôs-se a fazer as sopas de carapaus antes
que o seu genro chegasse com o gado, a menina se dormiu outra vez e Catarina
arrumou o avio que duraria para quinze dias ( no campo era assim, tinham de se
governar com o que havia e não era assim muito, tempos difíceis esses!) ,
enquanto o fazia pensava “ temos pão , temos que comer , temos saúde e para
além disso temos a nossa menina , que mais poderemos querer , há gente pior do
que nós”, Era testemunha de pessoas que não tinham para comer e aproveitavam
carne putrefacta com o intuito de sobrevivência e caminhavam ao sabor do vento
, ela tinha um teto , tinha paz e tinha
estabilidade , pois aquele lugar tão pacífico por aqueles tempos tinha sido
cenário de muito sofrimento pela sua
localização junto à raia , seres humanos que apelidaram de refugiados
atravessavam a fronteira diariamente fugindo a uma guerra injustas ( todas as
guerras são injustas) , estas árvores e estas rochas foram testemunhas da
intolerância do ser humano. Catarina em Santo Aleixo da Restauração viu chegar
gente amedrontada á procura de um refúgio onde pudesse sobreviver, muita dessa
gente foi encurralada em praças de toiros e enviada de volta a Espanha onde um
fim macabro a esperava. Hoje vimos a guerra na televisão, mas nós tivemo-la tão
perto e acabou por deixar cicatrizes nas gentes que vivia junto à raia. O
pantaneiro figura lendária destes tempos da guerra civil de Espanha,
representava o resistente, o inconformado com a situação e com uma consciência
politica incomum andava fugido coerente com as suas convicções pois ele sabia
se o apanhassem seria fusilado.Fala-se que um casal de seareiros estava junto à
raia no tempo da ceifa e eis que chega junto deles uma patrulha falangista, e
começaram a contar episódios da guerra, um dizia:
-mira maté mi
hermano y este su padre
O casal já idoso
tremia que nem varas verdes e tinham medo de falar, pois quem mata o irmão e o pai,
melhor nos mata a nós. Estas cenas eram muito comuns por esses tempos, era o
terror que ameaçava as pessoas, estou a lembrar um poema inédito que alguém fez
.
Em 36 que a
guerra foi começada,
no mês de Julho
comecei a estar perdida,
mas me vejo de todo destroçada,
eu sou a triste
pobre Espanha desvalida.
Eu sou a triste
pobre Espanha desvalida
São os meus
filhos que me têm devorado
Eu vejo além no
campo a cruz erguida
Dos corpos humanos
que lá têm sepultado
Até que por fim
deixarei de ser Espanha,
e perderei este
meu ser de toda a vida,
pelos abusos e
flagelos da campanha ,
eu vejo além e
no campo a cruz erguida.
Quem escreveu
este poema foi uma portuguesa que vestindo na pele a pobre triste Espanha desvalida,
escreveu tudo o que a sua alma sentia, pois ela foi testemunha da chegada dos
refugiados “seres humanos abandonados por essa triste pobre Espanha que não
conseguia defender os seus próprios filhos “
De repente …
-Catrina estás
pensando na morte da bezerra, são horas de jantar, que te passa?
-Que se vai a
passar mãe estava só pensando e não dei pelo passar do tempo.
-Já tenho a
plangana na mesa e já miguei as sopas
Mariana,
Vicência, Manuel e Catarina sentavam-se calmamente à mesa depois de um dia
esgotante de labuta:
-Estão bem molinhos
os grões Come sopinhas Mariana para cresceres.
-Já se ouvem os
lobos uivando.
-Mi tem medo.
-Come as
sopinhas e os grões todos senão eu chamo os lobos.
-nãõõõ, mi comi
vó.
-Então Barrancos
ainda está no mesmo sítio ?
-Que graça se
calhar mudou de sítio , tem cá uma graça !
- E a nossa
pirralha portou-se bem ?
-Portou, portou
sempre a querer mamar e já tão grandes, nem sabem o trabalho que dá ir com ela
fazer o avio!
-Mãe lave os
pratos e as colheres que eu varro o chão.
-Já são horas da
caminha, amanhã há que madrugar e estamos aqui olhando para as paredes pelo
menos temos o corpo esticado.
-Lá estás tu com
a mesma conversa, queres um rádio mas para isso tinhas de deixar de fumar, não
há dinheiros para comprar rádios, é todas as noites a mesma conversa , vejam lá !
-Ai, ai , aminha vida
e uma pessoa aqui degradada neste fim de mundo , se teu pai vivesse
outro galo cantaria , comprem o rádio para que se cale !
-Deixe de meter
o bedelho onde não é chamada e vá mas é
deitar-se e leve a menina ,
-Ela é tua , não
minha , vamos lá Marianita qui tu mãe
vai dormir descansada”
-Ai mãe , ai mãe
, ai mãe, Até amanhã.
-Até amanhã
minha sogra
-Mariana dá um
beijo ao pai e outro à mãe
Mais um dia
igual a muitos outros tinha terminado , as luzes apagaram-se lá fora o silencio
da natureza , o que facilitava a quem estivesse atento lá fora ouvir o som das
vozes do mundo que são mais audíveis em ambiente campestre.
Amanhã será
outro dia…
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