sexta-feira, 3 de agosto de 2018

UM DIA IGUAL A TANTOS OUTROS /6º CAPÍTULO


Estávamos em Setembro de 1958, precisamente no dia 20 de Setembro e podíamos visualizar Catarina escarranchada na burra a caminho da vila a fazer o avio, levava no alforge a sua menina adormecida pois ainda mamava e por isso tinha que levá-la sempre consigo. Mariana era uma criança franzina mas saudável, saciava-se com o leite materno de que Catarina tanto se orgulhava “tenho leite com fartura a menina não morre à fome”. Atrás dela visualizou alguém que caminhava e que ela identificou de seguida ( um contrabandista com quem se tinha cruzado várias vezes , um pobre diabo que tinha de percorrer quilómetros pelo meio do mato , tarefa arriscada mas necessária , tinha de fugir aos caminhos principais , não fosse a guarda fiscal intersectá-lo e podia ter muitos problemas e ele precisava de fazer isso para alimentar 8  bocas que tinha em casa e na esperança de mais uma muito brevemente pois a sua companheira estava de esperanças , a barriga já era enorme , o que quer que fosse não tardaria a nascer.).
O pensamento de Catarina voou até Santo Aleixo da Restauração e lembrou o guarda fiscal Francisco que tinha escolhido a profissão errada pois falava-se que era um homem bom e há tempos integrado numa patrulha teve de tirar uma mochila de café ao vizinho do lado e quando chegou a casa ouvia-se grande algazarra na casa ao lado com choros e lamentos:-Ai Joaquim, que faço não temos pão para comer e agora perdeste o café, e os nossos meninos que comem? Desgraçadinha sou, e tu o que fazes vais para a venda a gastar o que não tens!
Francisco não suportou ouvir tais lamentos pois ele também era pai, num impulso agarrou a mochila e arremessou-a por cima da parede do quintal e seguiu-se o silêncio pelo que tinha acontecido, não convinha falar depois de tanta generosidade, apenas olhares de cumplicidade ao longo dos anos. Francisco podia ter arranjado problemas com a sua atitude; ter de justificar o desaparecimento da mochila mas contou com a compreensão do seu colega de patrulha, compreensão pouco profissional, mas compreensível em termos humanísticos. Francisco entrava em stress cada vez que saía de patrulha para o campo pois sempre haveria um desgraçado a quem teria de prejudicar, alguém a apanhar bolota ou azeitona em terreno alheio, e os contrabandistas que eram uma praga á noite.Era a sua profissão e a miséria era tanta! Cada um safava-se como podia! Melhores dias viriam para Francisco já faltava pouco para se reformar e então podia descansar com os míseros tostões que o Estado lhe atribuiria e ocuparia os dias no seu quintal tratando da sua horta a tempo inteiro e poupando a sua companheira que já tinha bastante com as lides domésticas.
De repente:
-Mamã, mama ahahah
-Já vai Mariana já te dou maminha, que é que eu faço para te desmaginares da mama, já és tão grande!
-Mama mama mama. Ahahah.
Catarina desceu da burra e tirou a sua menina do alforge, sentou-se numa parede e aconchegou-a e ela chupou com sofreguidão o néctar dos deuses, depois   tornou a escarranchar-se com Mariana á sua frente:
-Arre, burra que estamos chegando a Barrancos.
Toc toc toc toc lá seguia Lourença a caminho de Barrancos e
“Quem tem filhos pequeninos
Sempre lhes há-de cantar
Quantas vezes a mãe canta
Com vontade de chorar”
“Arre burriquito vamos a Belém
a ver o menino que a senhora tem
que a senhora tem que a senhora adora
arre burriquito vamos lá embora”
-Catrina que alegre vais, e a menina vai tão caladinha, parece que vai dormida.
-Já se dormiu outra vez, e vosmecês vão lavar?
-Tem de ser, logo tem deixarão ali as lascas de sabão que sobrarem para lavares a roupa da pequena.
-Eu aproveito-as e agradeço a vosmecês.
Toc toc toc toc
Chegaram a Barrancos e foram logo direito à loja dom Borralho onde Catarina fazia o avio, onde lhe davam fiado e pagaria após a venda dos chibos e os acertos com o patrão pois teriam uma percentagem do dinheiro das vendas. Em 1958 muita gente vivia assim e a todos ganhavam com essa entreajuda, eram outros tempos, hoje vive-se com o dinheiro na mão, apesar de ainda haver quem dê fiado, não a longo prazo mas a prazos mais curtos, sempre há quem de uma maneira altruísta continue a praticar este ato de entreajuda (o Homem ainda é humano!).
Uma barranquenha ofereceu-se logo para apanhar Mariana, mas não pode ser, a menina começou a chorar, não estava habituada a ver ninguém e então estranhava as pessoas, mais trabalho para Catarina que tinha que andar com ela ao colo, já andava mas pedia colinho. Com alguma ajuda meteu o avio nos alforges e lá se preparou para voltar para a malhada do Tambor sem antes deixar de passar pela praça a comprar carapaus do alto para fazer umas sopas com o peixe fresquinho quando chegasse. Naquele tempo a praça localizava-se no Alto-Sano, hoje Largo de São Sebastião, ali se podia encontrar a fruta os legumes, a carne e o peixe que se resumia naquele tempo a venda de sardinhas e carapaus e cação . Os carapaus e as sardinhas eram mais baratos e muito apreciados pela população mais pobre que não podia comprar cação nem bacalhau seco, (só colas porque o bacalhau era caríssimo, aliás o povo é que não tinha poder económico para adquiri-lo).Com o avio lá partiram para o meio da natureza, para bem longe das intrigas daquela época para o paraíso onde tudo era puro e natural onde a presença da mão humana ainda não tinha a notoriedade que se começou a manifestar nas próximas décadas, num tempo não muito distante.
Era já a uma da tarde quando chegaram, Vicência predispôs-se a fazer as sopas de carapaus antes que o seu genro chegasse com o gado, a menina se dormiu outra vez e Catarina arrumou o avio que duraria para quinze dias ( no campo era assim, tinham de se governar com o que havia e não era assim muito, tempos difíceis esses!) , enquanto o fazia pensava “ temos pão , temos que comer , temos saúde e para além disso temos a nossa menina , que mais poderemos querer , há gente pior do que nós”, Era testemunha de pessoas que não tinham para comer e aproveitavam carne putrefacta com o intuito de sobrevivência e caminhavam ao sabor do vento , ela tinha um teto  , tinha paz e tinha estabilidade , pois aquele lugar tão pacífico por aqueles tempos tinha sido cenário  de muito sofrimento pela sua localização junto à raia , seres humanos que apelidaram de refugiados atravessavam a fronteira diariamente fugindo a uma guerra injustas ( todas as guerras são injustas) , estas árvores e estas rochas foram testemunhas da intolerância do ser humano. Catarina em Santo Aleixo da Restauração viu chegar gente amedrontada á procura de um refúgio onde pudesse sobreviver, muita dessa gente foi encurralada em praças de toiros e enviada de volta a Espanha onde um fim macabro a esperava. Hoje vimos a guerra na televisão, mas nós tivemo-la tão perto e acabou por deixar cicatrizes nas gentes que vivia junto à raia. O pantaneiro figura lendária destes tempos da guerra civil de Espanha, representava o resistente, o inconformado com a situação e com uma consciência politica incomum andava fugido coerente com as suas convicções pois ele sabia se o apanhassem seria fusilado.Fala-se que um casal de seareiros estava junto à raia no tempo da ceifa e eis que chega junto deles uma patrulha falangista, e começaram a contar episódios da guerra, um dizia:
-mira maté mi hermano y este su padre
O casal já idoso tremia que nem varas verdes e tinham medo de falar, pois quem mata o irmão e o pai, melhor nos mata a nós. Estas cenas eram muito comuns por esses tempos, era o terror que ameaçava as pessoas, estou a lembrar um poema inédito que alguém fez .

Em 36 que a guerra foi começada,
no mês de Julho comecei a estar perdida,
mas  me vejo de todo destroçada,
eu sou a triste pobre Espanha desvalida.

Eu sou a triste pobre Espanha desvalida
São os meus filhos que me têm devorado
Eu vejo além no campo a cruz erguida
Dos corpos humanos que lá têm sepultado

Até que por fim deixarei de ser Espanha,
e perderei este meu ser de toda a vida,
pelos abusos e flagelos da campanha ,
eu vejo além e no campo a cruz erguida.

Quem escreveu este poema foi uma portuguesa que vestindo na pele a pobre triste Espanha desvalida, escreveu tudo o que a sua alma sentia, pois ela foi testemunha da chegada dos refugiados “seres humanos abandonados por essa triste pobre Espanha que não conseguia defender os seus próprios filhos “
De repente …
-Catrina estás pensando na morte da bezerra, são horas de jantar, que te passa?
-Que se vai a passar mãe estava só pensando e não dei pelo passar do tempo.
-Já tenho a plangana na mesa e já miguei as sopas
Mariana, Vicência, Manuel e Catarina sentavam-se calmamente à mesa depois de um dia esgotante de labuta:
-Estão bem molinhos os grões Come sopinhas Mariana para cresceres.
-Já se ouvem os lobos uivando.
-Mi tem medo.
-Come as sopinhas e os grões todos senão eu chamo os lobos.
-nãõõõ, mi comi vó.
-Então Barrancos ainda está no mesmo sítio ?
-Que graça se calhar mudou de sítio , tem cá uma graça !
- E a nossa pirralha portou-se bem ?
-Portou, portou sempre a querer mamar e já tão grandes, nem sabem o trabalho que dá ir com ela fazer o avio!
-Mãe lave os pratos e as colheres que eu varro o chão.
-Já são horas da caminha, amanhã há que madrugar e estamos aqui olhando para as paredes pelo menos temos o corpo esticado.
-Lá estás tu com a mesma conversa, queres um rádio mas para isso tinhas de deixar de fumar, não há dinheiros para comprar rádios, é todas as noites a  mesma conversa , vejam lá !
-Ai, ai  , aminha vida  e uma pessoa aqui degradada neste fim de mundo , se teu pai vivesse outro galo cantaria , comprem o rádio para que se cale !
-Deixe de meter o bedelho onde não é chamada  e vá mas é deitar-se e leve a menina ,
-Ela é tua , não minha  , vamos lá Marianita qui tu mãe vai dormir descansada”
-Ai mãe , ai mãe , ai mãe, Até amanhã.
-Até amanhã minha sogra
-Mariana dá um beijo ao pai e outro à mãe
Mais um dia igual a muitos outros tinha terminado , as luzes apagaram-se lá fora o silencio da natureza , o que facilitava a quem estivesse atento lá fora ouvir o som das vozes do mundo que são mais audíveis em ambiente campestre.
Amanhã será outro dia…

Sem comentários:

Enviar um comentário