sexta-feira, 20 de julho de 2018

Há dias assim …5º capítulo de “ ECOS DE UMA VIDA “

Santo Aleixo, Santo Aleixo,
ela lá e eu aqui
os anjos do céu me levem
pra terra onde eu nasci

Com os pássaros do campo
eu me quero comparar
andam vestidos de penas
o seu alívio é cantar

Se as saudades matassem
já eu tinha falecido
elas não matam, mas doem
Fazem moer o sentido

Não pensem por eu cantar
Que a vida alegre me corre
Eu sou como o passarinho
Tanto canta até que morre

A voz de cristalina de Catarina entoava nos campos das Russianas, a sua voz irradiava felicidade e alegria. Lembrava a sua aldeia natal que as circunstâncias da vida a obrigou a deixar: agora havia Mariana e havia que zelar por ela e dar-lhe tudo que pudessem. Catarina era naturalmente alegre e contagiava tudo em seu redor era óbvio que naquela madrugada de Julho de 1958, a sinfonia da natureza juntava-se harmoniosamente à voz de Catarina. Dentro da malhada do tambor Mariana ainda dormia tranquila, aconchegada a Vicência que se preparava para deixar o catre e ir fazer o lume para fazer o café e pôr o jantarinho de grãos a cozer. Catarina e o seu genro daqui a pouco voltavam e tinham que comer alguma coisa para poderem enfrentar a labuta do resto do dia.
Na noite anterior Mariana tinha adormecido com a promessa que no outro dia iria á Pipa com Catarina buscar água montada na burra Lourença. Ela não sabia o que era, a sua avó tinha-lhe explicado que era uma fonte que corria pelas rochas e que a água vinha das profundezas da terra:
-Bu bu, mim té buu
-Amanhã bebes pelo cucharro que o pai te fez, agora são horas de ir dormir.
Vicência ao levantar-se sorriu ao ver a sua menina num sono profundo talvez a sonhar com a água fresca da Pipa, no seu rosto era visível um leve sorriso como, talvez estivesse a viver um sonho idílico.
Com todas as cautelas fez o lume .fez o café e pôs o jantar a cozer, lá fora ouvia-se Catarina e a passarada a chilrear enquanto Manuel se preparava para ir pastar o rebanho.
Estava na hora de ir procurar algo para aquecer o estômago e então entrou na malhada e já Vicência o esperava com um prato de fatias douradas e um café bem quentinho e apetitoso, entretanto apareceu catarina transpirada de tanta labuta:
-Manel vou á água antes que faça mais calma.
-Já aí vem o calor, vai ser um dia muito calmoso, vou despachar-me e sair com as cabras.
Todos os dias era a mesma labuta porque o gado tinha de sair bem cedo para o os serros e aproveitar a fresquidão da manhã, pois por volta do meio-dia o calor já abrasaria a terra e teriam de voltar para o acarro.
-Catrina tens de ir à água, já albardaste a burra?
-Já está pronta, só falta a menina que eu prometi-lhe levá-la á água.
-Parvoeiras que sabe ela!
Entretanto
- Mamãã, aboo
-Agora é que estamos arranjadas, vem comer que se faz tarde e têm de ir á água. 
- Dê-lhe leitinho e fatia que ela gosta.
Eram oito horas no velhinho relógio, eram horas de irem á Pipa lá partiu a burra Lourença com a sua preciosa carga e dois cântaros de barro nas aguadeiras para trazerem a água:
-Arre, Lourença que vamos à pipa com a nossa menina.
-Pi pa pi pa buu
Mariana com os olhos bem abertos observava tudo à sua volta. Tudo era tão belo! Tudo estava tão calmo!
Percorriam a vereda que as levaria a buscar aquele bem essencial e que a elas nem lhes passava pela cabeça que um bem tão abundante seria num futuro não muito longínquo um grave problema para a humanidade pela sua escassez, Catarina e Mariana, duas almas genuínas neste mundo já então sofisticado. Catarina tinha Mariana, tinha pão, tinha água, tinha paz, tinha amor, que mais poderia desejar?
Num mundo onde a globalização era uma miragem e que ela não chegaria a conhecer, ali no meio da natureza sentia-se livre como os passarinhos que voavam sem se cansarem mesmo contra o vento
Eis que de repente Lourença, assustou-se, deu um salto e deixou cair a carga os cântaros partiram-se e mãe e filha viram-se de repente no chão aturdidas e doridas.
-Mariana! Mariana!
-Mamã! Mamã! Medo!
-Não tenha medo que a mamã está aqui, agora não temos cântaros, vamos outra vez à malhada.
-Bu bu
-Cala-te, Mariana.
E lá se montaram na burra e voltaram para trás, ainda não seria aquele dia que Mariana iria ver a Pipa.
-Que se passa? Ai que desgraça! Valha-me Nossa Senhora das Necessidades que partiram os cântaros!
-Tenha calma que à menina não lhe passou nada e os cântaros eram velhos, tome lá a menina que eu vou sozinha agora, e os grãos já estão cozidos?
-Ai filha! Estão mais duros que pedras, não sei o que se passa, parece que o diabo anda com a gente, daqui a pouco vem o teu Manel valha-nos Deus! E o que comemos em cima?
- Logo em vindo faço uma tortilha barranquenha
-Vai já e que Nossa Senhora das necessidades te acompanhe, que não passe mais nada hoje, já chega de desgraças!
Lá abalou outra vez Catarina e eis que no mesmo sítio a burra zurra e dá um repinote ao ver no meio da vereda uma enorme cobra toda eriçada e com a língua de fora;” Não terá sido tua a culpa dos cântaros se terem partido?”, e contornou –a metendo a burra pelo mato e lá chegou á Pipa que nada tinha a ver com atualidade , apanhou os cântaros e subiu por  uns degraus esculpidos na rocha de uma maneira natural , com cuidado para não partir os vasilhame e a custo lá chegou ao cimo.
Quando voltou com a água para beber encontrou Vicência lavada em lágrimas:
-Que se passa!? Que se passa, meu Deus!?.
-Ai! os grões não se cozeram e ai minha vida o que come o teu Manel! Os cabrões estão duros como pedras e está uma pessoa para aqui degradada para ganhar esta porcaria.
-Mãe, eles se têm cozido das outras vezes, se calhar deixaram de ferver, eu tenho que estar em todo o lado, valha-me a nossa senhora! E a menina?
-Caiu fugindo atrás de uma galinha, apanhou um berrinhe e dormiu-se.
-Ai que a minha menina está toda encarnada e tem um arranhão na testa.
-É para que esteja quieta, não se faz caso de ninguém. Bem-feita, é para que aprenda.
Ouve-se O Manuel tossindo:
Mãe já aí vem o meu Manel vou fazer a tortilha.
-Vem sempre tossindo, mas não deixa de fumar, o mal que isso lhe faz e o dinheiro que se gasta.
-Mãe é uma distração não tem mais nada, não implique com ele com este calor.
Algum tempo depois:
- Que se passa com os grãos parecem pedras, não há quem os coma! Eu não os quero, só vou comer sopas e tortilha. Que porcaria! E a menina que lhe passou que está toda gatanhada?
-Bu bu bu
-Que tens Mariana, a menina está tão quente e tem umas manchas no corpo.
-Ai minha vida! Bebe e vamos mas é comer granitos.
-Pedras, dê-lhe sopas de pão e tortilha. Esqueceram-se da linguiça.
-Amanhã não faço o almoço porque não quero!
Saiu irada porta fora.” Uma pessoa neste ermo e tem de ouvir isto, se o meu bento vivesse, outro galo cantaria “
-BU bu bu mamã
-Só o que quer é água e está muito quente. A menina está doente.
Catarina apavorada exclamou:
-É sarampo. Que Deus nos valha! Temos que ir a Barrancos e levar a menina ao médico. Sarampo não é brincadeira!
-Ai, ai, ai, para onde me trouxeram! Para este fim do mundo! Ai, ai, ai
-Manel vai aparelhar a burra.
-Vais sozinha? Que vaia tu mãe contigo.
Lá se escarranchou na burra mais uma vez Catarina com a sua menina tremendo de frio naquele dia quente de Julho. O senhor doutor muito afável lá consultou Mariana e recomendou muito repouso e que não andasse ao vento pois o sarampo não era para brincar e deviam  ter muito cuidado com a menina que era muito pequenina. Após duas semanas os sintomas do sarampo eclipsaram. Mariana voltou a saltar e a fugir alegremente atrás das galinhas num passado tão distante onde a revejo de vestido de chita às bolinhas encarnadas ao lado da Sentida, respirando a beleza, a tranquilidade, o tédio do ambiente campestre. Aquele dia ficará na memória enquanto ela for gente e tiver neurónios para pensar e recordar.
Lourença, a pipa, a Sentida, valha-nos nossa senhora das necessidades e a sua avó com seu xaile de luto eterno, a maldita cobra e até o jantar de grões duros como pedras.
Que saudades desses momentos!
Que saudades das alegrias passadas!
Que saudades das agruras passadas!
Que saudades do já vivido!
Há dias assim…



Sem comentários:

Enviar um comentário