“A minha filha mais velha depressa me cooptou para cúmplice dos seus abusos digitais. (...) envolve-me em todas as matreirices”
Depois de muitos meses a poupar a semanada, a Carolina conseguiu comprar a PlayStation Portable (PSP, para os amigos) com que sonhava desde que descobrira os seus encantos numa visita a casa das primas mais velhas. Com a PSP veio o jogo ‘Toy Story 3’, e com o jogo ‘Toy Story 3’ os seus dois polegares tornaram-se o centro da sua vida: subitamente, a rapariga que não parava quieta passou a querer estar tardes inteiras com os olhos mergulhados num minúsculo rectângulo de plástico, a tentar salvar ‘Woody’ e ‘Buzz’.
Eu sou da geração pioneira dos jogos de computador, aquela que tornou o ZX Spectrum e os seus espantosos 48K num dos objectos mais populares dos anos 80. Foram horas e horas, dias após dias, semanas atrás de semanas a jogar ‘Match Day’ com o meu irmão, já para não falar de clássicos como ‘Arkanoid’ ou ‘Chuckie Egg’. Isso faz da Carolina, por sua vez, membro da primeira geração em que os pais percebem perfeitamente o vício que se apodera dos filhos quando uma consola lhes cai nas mãos.
Também eu já passei por aquela vontade frenética de ultrapassar mais um nível, de chegar um pouco mais à frente, de finalmente conseguir dar aquele salto, matar aquele inimigo, marcar aquele golo. E por isso o choradinho do "vá lá, papá, é só mais um bocadinho, a seguir eu vou a correr, está bem?" é como que um eco, que ressoa na minha cabeça e remete para mim próprio, dentes tortos e penteado ridículo, aí por volta de 1984.
Só que hoje em dia cabe-me a mim dizer, "não, não está nada bem, minha menina, vai mas é para a mesa que ainda há regras nesta casa". E eu esforço-me por desempenhar o papel de pai disciplinador. Só que, infelizmente – há que admiti-lo, e a minha mulher não se cansa de mo lembrar –, eu sou péssimo nesse papel. A minha boca está a dizer as palavras certas, mas a minha cabeça paira longe, ao ver o reflexo da criança que já fui nos olhos pedinchões da Carolina.
E claro, os miúdos, com aqueles radares incríveis com que vêm munidos de fábrica, topam isso à distância. Resultado: a minha filha mais velha depressa me cooptou para cúmplice dos seus abusos digitais. Passa-me a PSP para as mãos para resolver certos problemas, implora-me para jogar nas costas da mãe, envolve-me em todas as matreirices. Às quais digo sempre que não, porque sou um pai consciente. Descontando aquelas vezes em que digo "sim".
Texto do jornalista João Miguel Tavares, publicado no Correio da manhã de 23/01/2011
Antes as crianças brincavam na rua em contacto directo com a natureza e muitas vezes mal nutridas eram felizes , e como eram felizes! Hoje passam horas frente a um ecrã com jogos virtuais.Observo como o meu neto se irrita e entra em stress por não conseguir: passar de nível , marcar um golo matar um inimigo, como vejo nele tanta ansiedade , ansiedade que eu não tinha com a idade dele .Os educadores devem ter capacidade para tentar inverter esta ordem impondo autoridade( não confundir com autoritarismo )benéfica em prol do desenvolvimento saudável das nossas crianças.
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