Sábado, 5 de Junho de 2010
Esmiuçar de memórias
Há 53 anos , na madrugada do dia 19 de Janeiro , o doutor Bento Caldeira foi chamado com urgência à rua da Balança , em Santo Aleixo da Restauração : um ser humano queria nascer. Apesar de ser um médico em princípio de carreira, com coragem e determinação ,ajudou-me a vir para esta selva que é o mundo actual.Lembram as crónicas da época que nasci muito debilitada e como a minha mãe ainda não tinha leite, a minha avó deu-me uma gema de ovo e aí começou a minha luta pela sobrevivência.
Eu e o aparecimento da televisão temos a mesma idade, nascemos na longa noite...,António de Oliveira Salazar e Américo de Deus Rodrigues Tomás estavam à frente do destino do nosso país.
Os meus primeiros anos de vida foram passados em ambiente campestre entre flores e animais , o meu pai era pastor de cabras , e muito cedo aprendi a amar e a respeitar os animais e o ambiente.
Recordo com saudade os dias em que ia com o meu pai guardar as cabras: Era lindo ver o rebanho a mordiscar uma esteva aqui , um sargaço acolá , com os cães sempre atentos , não fosse aparecer o lobo e atacar o rebanho.Eu nunca vi um lobo, recordo -me do seu uivo de fome vindo do alto do cerro ,nas noites frias e chuvosas de Inverno , enquanto eu sentada à lareira , com os olhos arregalados e ouvidos atentos me deliciava com contos e histórias de vida que a minha mãe e avó me contavam ao serão.
Autêntico bicho do mato aos sete anos fui para Santo Aleixo com a minha avó , onde iniciei o meu percurso escolar e onde vivi pela primeira vez a experiência de estar doente, o que me reteve algum tempo em casa , mesmo assim transitei para a segunda classe.
Foram seis anos felizes onde arranjei as primeiras amizades, lembro com saudade a minha amiga Felicidade, companheira e cúmplice de sonhos e brincadeiras, e que o destino levou tão cedo negando-lhe o direito de ser feliz.
Os anos decorreram calmamente , intercalando a escola com as brincadeiras na rua ao fim da tarde. Fui tão feliz nessa época vivida entre Santo Aleixo e o campo ,onde ia passar A férias com os meus pais.Lembro-me da época natalícia , quando eu ainda acreditava no Menino Jesus, era uma época muito especial: a minha mãe e a minha avó faziam brinholos e arroz doce , o que me deliciava.Com muita pena via um galinácio ser sacrificado para saciar o nosso prazer de comer carne , só nos dias festivos é que isso acontecia.
Nas férias de Verão passava muitas horas na ribeira , onde aprendi a nadar e a pescar na corrente.Tenho saudades das águas claras e transparentes , nas quais não havia vestígios de poluição , nem se perspectivava que tal calamidade seria uma dor de cabeça num futuro não muito distante.
O fascínio pela leitura nasceu em mim : frequentava a biblioteca itinerante e embarcava em aventuras fantásticas, sonhando com contextos e cenários maravilhosos.
A minha percepção perante as injustiças começou a manifestar-se , recordo-me de um episódio quando frequentava a quinta classe: a professora teve a infeliz ideia de premiar o aluno que desse zero erros no ditado com a tarefa de castigar os colegas com reguadas , segundo o número de erros.Eu levei uma reguada e foi tão grande a hmilhação , que decidi que só voltaria à escola quando a professora me pedisse desculpa e...!?
Era tão linda a minha escola ; recordo o velho quadro de ardósia negro , a secretária da professora , onde se encontrava a régua tão temida ,sempre pronta para entrar em acção, lembro o pátio onde joguei à bola com os rapazes e que era uma escandaleira para a minha avó.
Chegara ao fim o meu percurso escolar em Santo Aleixo da Restauração, pois se queria continuar a estudar tinha de ir para Moura , o que estava fora de questão , visto não haver possibilidades económicas, então fui para o campo com os meus pais e foi aí que nasceu a minha paixão pela rádio, a música e as radionovelas preenchiam os meus dias. Tudo era simples e puro ao meu redor: os animais e os campos verdejantes e coloridos na Primavera. Nessa altura ainda havia as quatro estações do ano, as cegonhas e as andorinhas regressavam na Primavera e o calor tórrido do Verão vinha na altura certa.Nesse ano ganhei o meu primeiro relógio de pulso , fui apanhar bolota com a minha mãe e comecei a aperceber-me da necessidade que o ser humano tem de trabalhar para garantir a sua subsistência.
Foi nesse ano que recebi a boa nova: o o ano seguinte iria a estudar para Moura , que me deu muita alegria , porque o meu desejo de aprender era tão forte , estava disposta a quaisquer tipo de sacrifício para que esse sonho se concretizasse.
Eis-me desembarcando numa manhã cinzenta de Outono , na então vila de Moura , rumo a novas aventuras ...
Até
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